sexta-feira, 16 de abril de 2010

Santa Madre

E quando eu acordei, senti umas marteladas na cabeça.
Estava em meu ambiente de trabalho, e Joaquim estava sentado em minha mesa. Aquele filho de uma puta! Certamente isso era coisa dele. Teria me golpeado?
Resolvi não dar bola para isso. Fui embora antes de meu turno terminar. Levantei, peguei minha mochila e fui embora.
Já na porta de saída, troquei algumas palavras com a Wilma e encostei a porta atrás de mim. A cena à minha frente causou-me náuseas: fraturas expostas, gente morrendo, água, muita água. Carros empilhados às margens de um terreno baldio. Sangue.Vomitei, vomitei muito.
Queria sair dali o mais depressa possível. Queria acabar de vez com aquela sensação de pavor. Fui até a casa de meu pai, choramingando feito louco. Eu amava meu serviço; porém, na vida não há, infelizmente, contos de fada. Meu pai me recebeu aos risos, dizendo que eu causei tudo aquilo, e que meu lugar era na rua. Ali não ficaria mais.
Do pouco de dinheiro que me sobrou, fui parar em um hotel daqueles bem beira de estrada. Estava pobre e ferrado. Morei por lá um bom tempo.

Prosseguindo...um dia eu estava indo embora, olhando para as portas do imenso corredor, e bem na hora que eu passei perto, uma delas se abriu sozinha. Curioso, parei e fui olhar o que era. Estava tudo escuro lá dentro, e aquilo me pareceu um almoxarifado. Procurei o interruptor, mas não o encontrei. Fechei a porta e fui embora. Então você pensa: “E daí? História mais besta.”. Pensei nisso também, e me achei ainda mais ridículo por ter continuado com estes pensamentos depois que cheguei em casa e também antes de dormir.

De repente estava lá eu, de novo. Deitado, com fortes dores na cabeça, do lado de Joaquim, que usava meu computador. Mas não era meu trabalho. Era o almoxarifado. “Mas que porra de almoxarifado grande é este que eu não encontro essa merdinha de interruptor?” Comecei a correr, e não alcançava lugar nenhum. Não havia paredes. Não havia mais porta. Não havia Joaquim. “Onde está esse cafajeste? De certo roubou meu computador!”
Tudo escuro e silencioso. Resolvi me esconder para dar um susto naquele canalha.
Não sei quanto tempo ao certo permaneci escondido. Joaquim nunca aparecia...e o nada me invadia. Tomava meu corpo, e eu a cada momento me sentia mais “nada”.
Ele tinha que aparecer! Alguém tinha que aparecer em algum momento. E apareceu...
De repente tudo se iluminou, tudo se tornou mais claro. Não havia nada lá, só luz branca. Tudo bem claro. Essa luz não parecia vir de lugar algum, além do próprio escuro, como se um fundo negro jorrasse luz. E começou a ficar muito forte, muita luz, fechei os olhos e ouvi alguém falando comigo:
- Do que você tem medo, Paulo?

Sei lá eu, porra. Tenho medo de muitas coisas. De ficar pobre, de ninguém me querer, de nunca ser ninguém na vida, de ficar doente e ter que ir pro hospital numa maca, medo de ser assaltado, sequestrado. Mas me diga quem não tem?
Fiquei me perguntando quem seria aquele cara ali, comigo. O que ele teria a ver com minha vida? Não conseguia abrir meus olhos. Poderia eu ter medo dele, também?
Cogitei até a idiota hipótese de estar em um ‘reallity show’, em que eu seria o foco da porra da audiência. Pensei também que poderia ser meu pai. Não agüentei: “Caralho, porra! Se eu quisesse dinheiro, eu pediria emprestado!” Mas ele não respondeu. Permaneceu em silêncio. Não era meu pai.
Então aquela luz começou a desaparecer, mas não ficou totalmente escuro, não. Era algo meio abstrato, eu conseguia ver sua silhueta, via suas mãos até com certa nitidez. Meus olhos já poderiam, aos poucos, serem abertos. Aquilo veio caminhando até a mim, em minha direção, totalmente disforme, parecia ser ele uma ameba. Andava estranho, parecia ter bebido umas trocentas garrafas de gim. Aquela figura negra, grande, torta, fazia as coisas ao redor se contorcerem, bailando ao som de seus passos. Me protegi como uma criança se protege de seu irmão mais velho, com as mãos postas sobre o rosto, espiando por entre os braços o que estaria acontecendo.
Eis que aquela coisa chegou perto de mim e novamente perguntou:

- Do que você tem medo?

Hesitei em responder. Mas, para meu bem, resolvi lhe dizer.

- Tenho medo de ti, negritude. Não sei o que és.

E então a coisa preta começou a tomar forma. Uma aparência mais humana, encolhendo até ficar de meu tamanho. Sim, porque ela era enorme! E a desgraça ficou igual a mim! Tomou a minha forma. No começo pensei que fosse um espelho, mas definitivamente não era.

- E agora, continua com medo?

- Diria que não, porque não sei quais meus pontos fracos, mas você não sou eu e pode se transformar qualquer hora em qualquer coisa! Vai que você se transforma num dragão! Num cisne gigante! Num mamute esmagador de ossos! O que você quer?


- Quero que veja uma coisa.

Nesse momento eu parecia ser teletransportado, ou abduzido, sei lá como se diz. E não tem como eu explicar a sensação, algo muito, muito estranho! É como se cada pedaço de seu corpo estivesse sumindo, pequenos fragmentos, mas ao mesmo tempo você já está se recompondo! Os sentindo de novo em outro lugar, se unindo, porque é tudo muito rápido. A essa altura, eu já estava pensando que extraterrestres me encontraram me usaram como cobaia de teste de humanos. Mas eu? Eu não tenho absolutamente nada de especial. De uma forma ou de outra, eu só podia estar passando por um teste mesmo. Aquilo tudo só podia ser algum tipo de teste.

Minha cabeça doía de novo. Mas que merda! Eu não estava sangrando. Quando o teletransporte terminou, eu me vi numa casa. Era bem simples, limpinha, bem organizada, aconchegante. Se me permite comparar, era exatamente o contrário da minha, que era verdadeiramente uma zona. A grande ameba tinha sumido. Como não sabia o que fazer, sentei e esperei. É o que eu costumo fazer quando não sei como agir. Não demorou muito e uma mulher entrou pela porta, dizendo:

- Oi, meu amor! Cheguei!

Estava eu me sentindo um invasor. De quem seria aquela casa? Com quem ela estaria me confundindo? Ela veio em minha direção. Que mente insana...levantei e fui em direção à porta, ao seu encontro. Ela passou por mim, bem no meio! Como pode? Como fez isso? Aí e fiquei realmente assustado. Pensei estar morto. Tinha a certeza de ter morrido, pois não haveria outro jeito de alguém me atravessar assim. Fiquei desesperado. E nada daquela maldita ameba aparecer.
Uma sensação de poder e ego me invadiu. Eu já tinha morrido mesmo, o que eu poderia fazer? Simplesmente o que eu quisesse! Comecei a passar por tudo. Notei que eu não atravessava objetos, as pessoas é que me atravessavam. Uma criancinha, menininha linda, lá pelos seus 8 anos, veio correndo e também passou por mim. Era filha da mulher da casa.
Até então eu não havia parado para prestar atenção nas pessoas. Resolvi entender o que estava acontecendo. Foi quando a minha música predileta tocou. Aquela banda de rock que eu tanto prezava! Todos pareciam bailar ao som dos Ramones. Lá estavam pessoas que eu briguei outras épocas, ainda menino, depois adolescente, jovem, até Joaquim estava por lá! Parecia que naquele momento eu ia explodir, tamanha era minha raiva. Não entendo o que o negritude queria que eu visse, afinal. Pronto, eu já tinha visto aquela cambada de “fi’daputa”, já podia me retirar do aposento.

Talvez ele me deixasse ali para sempre, tentando agredir aquelas pessoas sem conseguir nem ao menos toca-las.Queria que eu visse como teria sido minha vida se eu não tivesse terminado com tudo, brigado com todos. Queria que eu mascasse o amargo da vida pro resto dos meus dias!

Então eu acordei.

Nossa, cara! Que sonho mais estranho... acordei e minha cabeça já estava doendo. Levantei e fui tomar água, a cabeça latejando. Procurava um comprimido pra dor quando senti uma fisgada e comecei a afundar, cair. Ficou tudo preto de novo, mas dessa vez eu apaguei.

- Paulo, Paulo! Está tudo bem? Acorda, Paulo!

Vozes e cheiros familiares não me ajudavam a lembrar onde eu estava. Depois de um tempo, a visão retornou. Estava no hospital, numa cama. Wilma falava comigo. A cabeça ainda doía.
Era a Wilma!

- Oi, Wilma.
- Oi, Paulo! O que aconteceu com você?
- Sei lá, acho que eu desmaiei.
- Disso eu sei. Mas o que você estava fazendo?
- Ah, eu ia tomar uns remédios. Minha cabeça estava doendo..e por sinal, ainda está.
- Mas no almoxarifado?
- Hã?
- O pessoal da limpeza encontrou você jogado lá.

A cabeça que já estava doendo, começou a rodar. Eu não entendia nada. Tinha sonhado que estive lá, não tinha? Mas então sonhei que fui pra casa e dormi e sonhei com a ameba? Nada fazia sentido algum. Esperei alguns minutos, disse a Wilma que já estava bem e saí. Era quase meio dia, estava com bastante fome. Por garantia, fui embora pela porta dos fundos do meu trabalho, para não passar pela tal sala de novo e encontrar com o bendito Joaquim.
Não estava a fim de fazer comida, então pedi um lanche. Meditei enquanto mastigava o hambúrguer. Eu queria respostas, queria saber o que realmente aconteceu, a razão daquilo tudo. Concluí que aquilo não podia ser verdade, era só um sonho. Desejos não expressos, gravados no subconsciente.
Fui pra casa tomar um banho. Entrei no banheiro e não tinha sabonete, corri até a despensa buscar um. Quando abri a porta, minhas vistas escureceram de novo e eu caí de joelhos. O mal estar passou e eu me levantei. Estava no mesmo lugar estranho do sonho de novo. O que decerto é lugar nenhum. A ameba apareceu de novo:

- Oi, Paulo. Aquilo ontem aconteceu mesmo. Peço desculpas por não dar um tempo pra você pensar.

- Pensar o quê? Já sei qual é a sua. Você é meu cérebro tentando me sabotar.

Aquela coisa ficou parada olhando pra mim com cara de quem não estava pra brincadeiras, muda. Então eu disse:

- Tudo bem. O que você quer, agora? Refleti sobre tudo e não cheguei a conclusão nenhuma, porque a minha conclusão estava errada.

- Você quer tentar?

- Tentar o quê?

- Ora, tentar ficar com seus parentes de novo. Sua vida de novo.

- Quero... Quer dizer, não! Não posso.

- Por quê?

- Somos diferentes.

- Não gostou do que viu? Você, com seus filhos?

- Filhos?...Ah, sim, claro que gostei! Mas o que eu posso fazer? Nem sei por onde ela anda!

Aquela sensação de teletransporte começou quando fiquei inteiro novamente. Sentei-me numa murada baixinha, que cercava um jardim.

- Pronto, agora você já sabe.

Acordei. Caído na despensa, minha cabeça doía pra burro. Peguei o sabonete e fui para o banheiro. Não aguentei, quando abri a porta, acabei desmaiando.

- Paulo, Paulo, está tudo bem? Paulooo, acorda!

Alguém tinha me achado e me levado pro hospital. Wilma estava lá outra vez.

- Wilma, não era pro Adriano estar aqui? Você está fazendo muitas horas extras. Estou com uma dor de cabeça infernal, desmaiei de novo. Quem me trouxe pra cá?

- Ué, Paulo. Ainda estou no meu turno. Olha, foi o pessoal da limpeza que te achou.

- Pessoal da limpeza? Na minha casa?

- Acho que você sonhou bastante, hein? Você nem foi pra casa, meu bem. Desmaiou no almoxarifado. O que você estava fazendo lá?

- Que horas são?

- Hmm... Quase meio dia.

- De que dia?

- 31 de janeiro.

- Tenho que ir, Wilma. Obrigado pelos cuidados.

-É nosso serviço, né, Paulo? – e riu.

Amaldiçoei aquela ameba filha da puta. Por que diabos me mostrou tudo aquilo? Pra me fazer de idiota? Minha cabeça começou a rodar, então senti o baque. Rolei, caí. Sentia o gosto de sangue na boca, não sentia meu corpo, não conseguia enxergar.
Acabei voltando ao hospital. Quando acordei, me contaram que eu tinha sido atropelado e batido a cabeça muito forte. Alguém conversou comigo e depois me trouxe pra cá. Hoje estou bem.
Essa é minha história, seu Lucas.

- É uma grande história, senhor Paulo. Serei seu médico a partir de agora. Bem-vindo ao Sanatório Santa Madre.

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